Celso Garrido, agrónomo de formação, coordenou localmente o Projeto Descentralizado de Segurança Alimentar, em São Tomé e Príncipe. Nesta entrevista faz o balanço dos seis anos de projeto, fala da organização do I Fórum de Agricultura Familiar e Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP e do futuro do país no que toca à Segurança Alimentar e Nutricional.

 

Como foi a experiência de coordenar localmente este projeto?

 

Em primeiro lugar quero salientar a importância das instituições estrangeiras desenvolverem projetos noutros países absorvendo a mão-de-obra local, neste caso os quadros locais, porque estes profissionais podem contribuir com o conhecimento que têm do seu país para a melhor execução de qualquer atividade. Neste aspeto, o Instituto Marquês de Valle Flôr, através do projeto PDSA, apostou nos quadros nacionais, não só no meu caso, como nos restantes membros da equipa técnica do projeto, que são são-tomenses, dando-lhes a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento do seu país.

Sinto-me agradecido por ter tido esta oportunidade e considero que esta é uma visão muito boa para o desenvolvimento de qualquer país, porque não há ninguém que queira ver o seu país melhor do que o próprio cidadão nacional, pelo que este tipo de atitude merece o meu apreço. Enquanto coordenador local do projeto sempre tive bastante apoio dos colegas do Instituto. Foi, de facto, uma experiência muito positiva e aprendi bastante durante os últimos seis anos, conheci pessoas novas e diferentes metodologias de trabalho.

 

Qual é o balanço que faz destes seis anos de trabalho?

Foram seis anos de muita experiência adquirida, de inovações, de muitas coisas novas que o país não tinha. O PDSA teve duas fases. A primeira, entre 2009 e 2011, apoiou diretamente a produção hortícola. Conseguimos apoiar várias organizações de horticultores que puderam produzir e escoar os seus produtos (o tomate, a cebola, o repolho, o feijão-verde, a cenoura, etc.). O projeto forneceu também materiais agrícolas, distribuiu sementes, e pequenas máquinas de agro processamento.

Foi também nessa altura que começámos a pensar na construção da primeira fábrica semi-industrial de transformação de mandioca em farinha e derivados, que neste momento está em funcionamento com o apoio do IMVF e da Federação de Organizações Não Governamentais em São Tomé e Príncipe (FONG-STP) com o acompanhamento da Rede da Sociedade Civil para Segurança Alimentar e Nutricional de São Tomé e Príncipe (RESCSAN-STP) e com o financiamento da União Europeia.

A fábrica está a ser dinamizada por um grupo de senhoras agrupadas em cooperativa que há mais de 50 anos transformavam a mandioca em farinha de uma forma muito tradicional, com métodos arcaicos, hoje em dia são utilizados processos de transformação mais eficazes, por exemplo, aquilo que outrora demorava 3 dias a ser feito, hoje demora 40 minutos.

 

A fase II do projeto, que decorreu entre 2012 e 2015, concentrou-se em alguns eixos fundamentais: o primeiro foi a dinamização da cadeia produtiva da mandioca com o intuito de obter matéria-prima suficiente para abastecer a fábrica de Margarida Manuel. Neste momento trabalhamos com mais de 500 agricultores na fileira da mandioca e conseguimos plantar em todo o país aproximadamente 800 mil estacas de mandioca.

Outro eixo no qual o projeto apostou foi o apoio ao Programa Nacional de Alimentação e Saúde Escolar (PNASE) tutelado pelo governo são-tomense. O objetivo deste Programa é adquirir produtos locais, quer produtos frescos, quer produtos transformados, por exemplo, a farinha de mandioca já foi incluída neste Programa, no fundo, pretende-se que sejam incluídos todos os produtos que provenham da agricultura familiar, sendo que o PDSA funciona como elo de ligação entre o agricultor e o PNASE.

Construímos também 3 polos de abastecimento para armazenamento dos produtos munidos com câmaras frigoríficas, computadores para registos, equipamento de trabalho e de limpeza, que são geridos pelo PNASE. Outro eixo está relacionado com a introdução de novas tecnologias e inovações. Conseguimos apoiar a construção de uma fábrica semi-industrial de transformação de polpas de frutas. São Tomé e Príncipe é um país tropical e tem muitas frutas de épocas sazonais e, por vezes, o desperdício é grande. Os nossos produtos frutícolas são produzidos de forma biológica, sem químicos, pelo que podemos alimentar as nossas crianças com produtos saudáveis.

Estes produtos são escoados, quer para o mercado tradicional, quer para o PNASE. Estamos a falar de um Programa que tem que alimentar durante 9 meses cerca de 45 mil crianças. Se o PNASE comprar produtos provenientes da agricultura familiar é possível melhorar a renda dos agricultores, a capacidade interna do país em consumir aquilo que produz e a saúde das crianças, incutindo-lhes hábitos alimentares mais saudáveis.

Queremos retomar a nossa dieta alimentar, com base nos produtos que produzimos localmente, para asseguramos a nossa soberania alimentar e não termos que depender dos outros.

 

A RESCSAN – Rede da Sociedade Civil de Segurança Alimentar de São Tomé e Príncipe foi uma das organizadoras do I Fórum de Agricultura Familiar e Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP. O que destaca desse encontro?

 

Pela primeira vez, a nível nacional e da CPLP realizou-se um Fórum dedicado à Agricultura Familiar e Segurança Alimentar com o apoio do PDSA através Rede da Sociedade Civil de Segurança Alimentar de São Tomé e Príncipe (RESCSAN). Foi um encontro benéfico que decorreu entre 13 e 18 de março de 2015 e permitiu a troca de experiências entre agricultores, representantes das plataformas camponesas e de redes da sociedade civil de todos os países de língua oficial portuguesa, nos domínios da agricultura familiar, da organização camponesa, da produção ecológica e biológica, entre outros.

Este encontro envolveu cerca de 100 pessoas, tendo havido uma participação massiva das ONG de São Tomé que pertencem à RESCSAN, mas também do Estado através de representantes de vários ministérios, como o Ministério da Agricultura, do Comércio, das Pescas, dos Negócios Estrangeiros, parceiros de desenvolvimento, do Programa de Alimentação Mundial (PAM) e da FAO e, inclusivamente, da Presidência da República.

Foi uma semana de intensa discussão e de muitas trocas de informação e experiências. Houve também espaço para visitas ao terreno durante as quais os participantes do Fórum ficaram a conhecer a nossa produção biológica de cacau e de pimenta, bem como o centro de recursos da RESCSAN.

 

O PDSA foi inovador do ponto de vista do fornecimento de alimentos ao Programa Nacional de Alimentação e Saúde Escolar. Quais foram os principais desafios e mais-valias associadas a esta iniciativa?

 

Ainda não estamos satisfeitos no ponto em que atualmente o PNASE se encontra por vários motivos. O Programa depende muito do orçamento geral do Estado para poder comprar produtos aos agricultores. Estamos a falar de uma classe que é descapitalizada, ninguém quer produzir e ficar mais de três meses sem receber o retorno do seu trabalho.

Em São Tomé e Príncipe, os orçamentos de Estado são aprovados entre março e abril, pelo que se um agricultor entrega os seus produtos ao Programa em dezembro, pode ter que esperar vários meses até receber o seu pagamento, e esta situação cria um grande desânimo entre os produtores que necessitam daquela renda para poderem continuar a sua atividade. Isto é um aspeto que está a ser trabalhado, daí que nas nossas intervenções sobre o projeto, façamos sempre um apelo ao Governo para que o PNASE possa ter outro estatuto, e um regulamento interno de funcionamento, e para que se reduzam as burocracias.

É necessário haver uma maior sensibilização e divulgação do Programa, algumas destas dificuldades acabam por ser o estrangulamento de um programa que tem como objetivo comprar produtos da agricultora familiar, e que acaba por não o fazer porque o agricultor familiar não pode esperar tanto tempo para receber o retorno do seu trabalho, acaba por ser um círculo que vai ter ruturas de cadeia.

Atualmente o PNASE compra a totalidade dos produtos no mercado “normal”, não estando a apoiar os agricultores familiares, que são os mais prejudicados, e este não é o ideal subjacente ao Programa. Ainda estamos aquém de conseguir ganhos, embora considere que o PNASE seja um dos melhores programas pensados pelo Governo nos últimos anos.

É também necessário que haja uma maior comunicação entre os vários ministérios, nomeadamente, entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros que atrai os recursos para o país, o Ministério da Educação que tutela o Programa, o Ministério da Agricultura que apoia os pequenos agricultores familiares e o Ministério das Finanças, que desbloqueia o dinheiro, estes 4 ministérios têm que estar interligados para que o Programa tenha êxito.

 

Considera que São Tomé e Príncipe está atualmente mais perto de alcançar uma segurança alimentar e nutricional consistente?

 

Considero que estamos bem preparados do ponto de vista dos instrumentos e da documentação. Temos uma Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional desenvolvida pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), que, embora careça de tradução para português, está em vigor.

Infelizmente o documento está escrito em francês, e isso limita muito o conhecimento e o acesso à informação por parte dos nossos quadros nacionais. Para além desta Estratégia, temos a RECSAN-STP, uma Rede criada a partir da sociedade civil são-tomense que discute políticas relacionadas com a segurança alimentar e nutricional e com o direito humano à alimentação adequada, temáticas que, felizmente, desde 2008 começaram a estar mais presentes.

Do ponto de vista produtivo ainda temos algumas deficiências, pelo que não acho que possamos dizer que somos um país com uma segurança alimentar plena, porque ainda dependemos muito do exterior, importamos muita coisa, importamos frango, óleo alimentar, arroz, massa, leite, queijo. Podemos, sim, dizer que somos um país com um grande potencial de capacidade produtiva, temos um solo fértil, temos boas condições climáticas para sermos autossustentáveis em termos de produtos agrícolas.

Considero que há uma evolução positiva, nomeadamente em termos da introdução de novas tecnologias de forma a aumentar a produção, aliás, conseguimos ter, em determinados períodos do ano, acesso a uma grande quantidade de produtos locais, a questão é que como temos problemas de falhas energéticas, de disponibilidade e de potabilidade de água em algumas partes do país, a conservação dos produtos fica condicionada e a disponibilidade não é assegurada por muito tempo.

Podemos dizer que há alturas em que temos muito tomate, mas há momentos em que não temos tomate nenhum, porque não temos como o conservar, o mesmo se passa com a manga e com outros produtos. Produzimos bastante, mas não conseguimos conservar os produtos e acabamos por importar manga e laranja, num país altamente tropical, com boas condições para produzir estes frutos.

Se investirmos na conservação, se tivermos boa energia e boa água conseguimos salvaguardar a produção local. Outra questão é o facto de São Tomé e Príncipe ser um arquipélago e, por vezes, o transporte marítimo e aéreo não estar assegurado, o que dificulta ainda mais o acesso, num determinado momento, a um ou a outro produto, pelo que considero que o país ainda não é sustentável neste domínio e não tem uma segurança alimentar consistente, precisa de apoio externo, de importar coisas de outros países e, por outro lado, não conseguimos conservar aquilo que produzimos.

 

Quais são os seus planos profissionais para o futuro?

 

O Ministério de Agricultura, com o apoio de alguns quadros, nos quais me incluo, criou o Centro de Apoio ao Desenvolvimento Rural (CADR), uma direção que tem como incumbência conceber e planificar todas as atividades relacionadas com o meio rural a nível nacional e dar assistência técnica aos agricultores, pescadores, criadores e produtores rurais em geral.

Vou regressar ao Ministério da Agricultura e colaborar com este Centro do qual fui diretor a nível nacional entre 2010 e 2012. Vou continuar o meu trabalho junto da sociedade civil enquanto coordenador nacional da RESCSAN, que tem funcionado como uma plataforma de diálogo muito importante, aliás, se hoje se fala em temáticas como segurança alimentar, direito humano à alimentação adequada, soberania alimentar é graças ao papel que a Rede tem desenvolvido.

Para além disso, nunca deixei de ser membro da ONG ADAPPA – Ação para o Desenvolvimento Agropecuário e Proteção do Ambiente, uma organização são-tomense que desenvolve atividades no meio rural.

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