Howard: “Uma onça de ouro, Sr. Dobbs, rende duzentos dólares em qualquer mercado do mundo. E sabe que mais? O senhor vai atrás dessa primeira onça e diz: ‘Bom, isso é suficiente para mim.’ Mas depois consegue um pouco mais e pensa: ‘Talvez eu só vá buscar mais umas duas onças.’ E então fica preso. Começa a ver ouro até em sonhos. Acorda no meio da noite a achar que ouve o ouro a chamá-lo. E aí está perdido. Está acabado. Torna-se um tolo obcecado pelo ouro.”
Walter Huston, ganhou o óscar de melhor ator secundário por este papel – Howard, e o diálogo insere-se como profecia apocalíptica ao destinatário desta mensagem, Fred C. Dobbs, protagonizado pela maior estrela masculina do cinema norte-americano de todos os tempos segundo o American Film Institute – Humphrey Bogart.
Obviamente que fazemos referência a uma cena do filme O Tesouro da Serra Madre de 1948[1], realizado por John Huston e baseado no romance homónimo de B. Traven.
Este discurso é frequentemente citado como uma das reflexões mais lúcidas do cinema sobre a corrupção moral causada pela ganância. Apesar de esta história se passar no México, nos anos 1920, hoje os Estados Unidos da América são o maior paradigma para a desigualdade. Nunca os ricos foram tão ricos. E querem sempre mais tal como o personagem Fred C. Dobbs.
A tendência dos últimos anos, acentuada pelos efeitos cumulativos das múltiplas crises, é o crescimento exponencial da “riqueza extrema”, concentrada nos chamados “ultra-ricos” (World Inequality Lab, 2023; Forbes, 2024). De facto, enquanto a parcela da riqueza global detida pelos 50% mais pobres da população mundial se mantém estável desde 1995 (entre 1% e 2%), a esmagadora maioria da riqueza monetária gerada nas últimas décadas tem sido apropriada pelos 1% mais ricos[2].
Hoje, 17 de outubro, celebra-se o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza[3], uma efeméride instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1992[4], em memória da manifestação de 1987 em Paris, quando mais de cem mil pessoas, mobilizadas pelo padre Joseph Wresinski, reuniram na Praça dos Direitos Humanos e Liberdades para a inauguração de uma pedra em homenagem às vítimas da pobreza, fome, violência e medo.
Este dia é uma chamada de atenção para a necessidade de erradicar a pobreza e concretizar os objetivos da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. Procura, também, mobilizar os decisores políticos e a sociedade civil para a implementação de medidas que corrijam ou mitiguem as causas e as consequências da pobreza. O combate à pobreza e a correção das desigualdades sociais são duas prioridades que exigem determinação e responsabilidade coletiva.
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 1 (ODS 1) — “Erradicar a pobreza em todas as suas formas e dimensões” — é o primeiro dos 17 objetivos da Agenda 2030. Contudo, os dados mais recentes são preocupantes. Segundo o Relatório de 2023 sobre os ODS, elaborado pelo Departamento de Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas (UN DESA)[5], cerca de 700 milhões de pessoas vivem ainda em pobreza extrema, definida como viver com menos de 2,15 dólares por dia (valor ajustado à paridade do poder de compra em 2017). A África Subsaariana concentra mais de metade dessa população, com taxas de pobreza que se agravaram devido à pandemia, às crises climáticas e aos conflitos armados.
A confluência de crises vividas nos últimos anos — pandemia covid-19, guerra na Ucrânia a caminho do 4.º ano, conflito na Faixa de Gaza, emergência climática e ambiental, crises alimentar e energética, entre outras — têm revertido avanços alcançados em matéria de desenvolvimento, com impactos desproporcionais nos países já marcados por elevados índices de pobreza e vulnerabilidade. Mas a pobreza não é apenas uma questão de rendimento. É também de exclusão social, falta de acesso à educação, à saúde, à justiça e à participação cívica — fatores que, combinados, criam um caldo propício para a radicalização e o extremismo violento.
Estudos do Gabinete das Nações Unidas para a Prevenção do Extremismo Violento (UNOCT) e do Centro das Nações Unidas para a Prevenção do Terrorismo (UNCCT) apontam consistentemente que a pobreza, o desemprego juvenil e a ausência de oportunidades são fatores estruturais que facilitam o recrutamento por grupos como o Boko Haram, o Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS) ou as JNIM (Grupo de Apoio ao Islão e aos Muçulmanos).
Um relatório de 2022 do Instituto para a Segurança dos Estados da África Ocidental (KAIPTC)[6] sublinha que “os jovens desempregados, sem acesso à educação formal e com pouca ou nenhuma confiança nas instituições estatais, são particularmente vulneráveis à propaganda extremista, que oferece não só uma identidade, mas também meios de subsistência e um sentido de pertença”.
Na região a África Ocidental, países como o Níger, o Mali, o Burkina Faso e a Nigéria enfrentam uma espiral de violência, a ligação entre a pobreza multidimensional e a radicalização é clara. Um estudo do Banco Mundial (2022)[7] revelou que em zonas rurais com altos índices de pobreza e baixa presença estatal, o risco de recrutamento por grupos armados aumenta em até 40%.
Jovens à rasca
A juventude africana é a mais jovem do mundo — cerca de 60% da população africa tem menos de 25 anos. Contudo, segundo a Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA)[8], o desemprego juvenil na região ultrapassa os 30%, com taxas ainda mais elevadas entre as mulheres. Em contextos onde o Estado falha em oferecer serviços básicos, educação de qualidade ou perspetivas de futuro, os grupos extremistas preenchem o vazio, oferecendo salários, proteção e uma narrativa identitária simplista.
A União Africana, no Plano de Ação Continental para a Prevenção e o Combate ao Extremismo Violento (2020–2024)[9], defende o investimento na educação inclusiva, emprego digno, boa governação e diálogo intercomunitário.
A tendência de concentração da pobreza extrema na África Subsaariana deverá reforçar-se: em 2030, a manterem-se as tendências atuais, dos dez países com maiores taxas de pobreza no mundo, nove serão nesta sub-região.
Outra tendência sobreposta é que a pobreza extrema está a concentrar-se, cada vez mais, em países afetados por conflitos e em situação de fragilidade, muitos dos quais vivem situações de crise persistentes e prolongadas. Estes países apresentam fracos indicadores de desenvolvimento, com a exposição a vários riscos (económico, ambiental, político, social e de segurança) a combinar-se com uma fraca capacidade de resposta do Estado para gerir, absorver ou mitigar esses riscos, gerando um círculo vicioso de perpetuação da fragilidade (OCDE, 2022).
“A Guiné-Bissau está inserida no seio de uma vizinhança violenta. O Sahel é a crise humanitária e de segurança que mais cresce no mundo. Tornou-se o epicentro do terrorismo internacional, bem como dos golpes de Estado mas quem sofre diretamente esses custos são as suas próprias populações” – escreveu Alex Vines, Diretor de África da Chatham House à data[10], um dos autores do Policy Paper intitulado “Opções de Resposta Política para a Crise de Segurança e Democracia na África Ocidental”[11].
No projeto Observatório da Paz[12]– Nô Cudji Paz, com os jovens, as mulheres e os líderes religiosos foram assumidos compromissos pela paz e coesão social que passam também pela preconização de oportunidades de emprego e desenvolvimento económico para os jovens, com vista à redução das condições socioeconómicas que podem contribuir para a vulnerabilidade à radicalização[13].
A pobreza é um fator violador da dignidade humana e um grande obstáculo à liberdade individual e coletiva, bem como o mais insidioso fator de desigualdade, porque agrava todos os outros. Por outro lado, as desigualdades constituem um obstáculo à redução da pobreza e têm impactos perniciosos no desenvolvimento ao nível económico, social, humano e até ambiental[14].
Nelson Mandela disse que “vencer a pobreza não é uma obra de caridade, é um ato de justiça.” Acrescentaríamos também, um ato de paz e coesão social. Porém vivemos na “Hora dos Predadores” conforme o novo livro de Giuliano da Empoli[15] – “neste mundo, onde já não há, no fundo, regras, dois tipos de predadores dominam. Primeiro, os predadores políticos. Esses dirigentes, que obedecem a uma única lei – a ação –, aliaram‑se a outro tipo de predadores, mais novos e mais contemporâneos: ‘os mercenários’ californianos da tecnologia”[16].
Calcula-se que um imposto de apenas 2% sobre os rendimentos dos “ultra-ricos” poderia gerar mais de $250 mil milhões USD anualmente, recursos essenciais para financiar o desenvolvimento, combater a pobreza e apoiar a transição ecológica. O primeiro-ministro francês, Sébastien Lecornu, esteve precisamente esta semana a refletir sobre estas medidas[18].
O combate à pobreza, à desigualdade, ao radicalismo e extremismo violento, passa pela exigência de uma boa governação, e passa necessariamente por uma sociedade civil organizada, forte, resiliente e ativa na defesa de uma consciência cívica.
Artigo por João Monteiro, coordenador de projetos no IMVF
[1] https://www.imdb.com/title/tt0040897/?ref_=fn_all_ttl_2
[2] https://observare.autonoma.pt/anuario/wp-content/uploads/sites/5/2025/03/Janus-2024-%E2%80%93-Patri%CC%81cia-Magalha%CC%83es-Ferreira-II.pdf
[3] https://www.un.org/pt/observances/poverty-day
[4] Resolução 47/196 da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 22 de dezembro de 1992
[5] https://unstats.un.org/sdgs/report/2023/
[6] https://www.kaiptc.org/wp-content/uploads/2022/11/occational-paper-48.pdf
[7] https://www.worldbank.org/en/publication/poverty-and-shared-prosperity
[8] https://www.un.org/counterterrorism/sites/www.un.org.counterterrorism/files/2114743-global_south_initiatives_en.pdf
[9] https://au.int/en/treaties/oau-convention-prevention-and-combating-terrorism
[10] https://observatoriodapaz.org/o-sahel-em-2025-opcoes-politicas-discurso-do-diretor-de-africa-da-chatham-house/
[11] https://observatoriodapaz.org/wp-content/uploads/2024/10/policy-paper-PT_final.pdf
[12] https://observatoriodapaz.org/
[13] https://www.imvf.org/wp-content/uploads/2024/02/agenda-comum-da-juventude-para-a-paz.pdf
[14] https://www.imvf.org/wp-content/uploads/2025/03/todxs-toolkit-pobreza-e-desigualdades.pdf
[15] https://www.bertrand.pt/livro/a-hora-dos-predadores-giuliano-da-empoli/32014018
[16] https://www.lexpress.fr/monde/giuliano-da-empoli-nous-avons-ete-humilies-le-moment-de-leurope-politique-est-venu-CEBVOWF7CNFGNKOOYJDPPILMZE/
[17] https://www.publico.pt/2025/09/24/mundo/noticia/supremo-guinebissau-rejeita-candidatura-coligacao-paigc-eleicoes-2148408
[18] https://www.publico.pt/2025/10/14/mundo/noticia/governo-frances-cede-socialistas-vai-suspender-reforma-pensoes-2150793