Bissau, 8h00 da manhã. Os toca-toca azuis e amarelos estacionam em segunda fila no Chapa de Bissau provocando o caos no trânsito, largando dezenas de passageiras carregadas que se apressam a ocupar os seus lugares no mercado do Bandim – como todos os dias, iniciam uma jornada de resiliência. Uma em cada três mulheres guineenses já foi vítima de mais do que um tipo de violência por parte de homens e 80% da violência tem origem no seio familiar, sendo o pai o principal agressor.

Além disso, a Guiné-Bissau enfrenta níveis preocupantes de violência baseada no género, como demonstram vários estudos recentes. Segundo estimativas do Inquérito MICS 2021 (Multiple Indicator Cluster Survey), cerca de 52,1% das mulheres entre os 15 e os 49 anos foram submetidas à mutilação genital feminina. As regiões de Gabú e Bafatá apresentam prevalências particularmente elevadas, atingindo 95,8% e 86,9%, respetivamente (fonte: FGMCRI, 2021). Em relação ao casamento precoce, cerca de 15,8% das raparigas entre os 15 e os 19 anos já estavam casadas ou em união antes dos 18 anos (fonte: OECD SIGI, 2023). Dados do mesmo relatório indicam ainda que 34% das mulheres consideram justificável a violência do parceiro em determinadas circunstâncias e que 53,1% da população acredita que a mulher não deve ganhar mais do que o marido. Estes indicadores revelam que a violência baseada no género continua profundamente enraizada no país, constituindo não apenas uma violação dos direitos humanos, mas também um obstáculo estrutural ao desenvolvimento, à estabilidade e à paz duradoura.

“Violência contra as mulheres é qualquer ato de violência baseado no género que resulte ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária da liberdade.” — Declaração da Assembleia‑Geral das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (A/RES/48/104), 20dezembro1993.

Em 2025 as ameaças não ocorrem nos toca-tocas para os lumus ou mercados da Guiné-Bissau, nas escolas ou nas tabancas. Passaram também para os telemóveis. À medida que cresce o acesso à internet, a violência contra as mulheres transita para o mundo digital. E o que começa online não fica online. “O abuso digital transborda para a vida real, espalhando o medo, silenciando as vozes e, nos piores casos, levando à violência física e ao feminicídio”, disse Sima Bahous, diretora executiva da ONU Mulheres.

Assinalamos hoje, 25 de novembro, o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres — precisamente 25 anos depois da sua instituição pela Organização das Nações Unidas (ONU). A campanha16 Dias de Ativismo contra a Violência de Género” é uma iniciativa global liderada pela ONU Mulheres, no âmbito do programa UNITE to End Violence Against Women. Realiza-se todos os anos entre 25 de novembro e 10 de dezembro, ligando o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres ao Dia dos Direitos Humanos[1].

[1] https://unric.org/pt/16-dias-de-ativismo-uma-campanha-da-onu-mulheres-contra-a-violencia-digital/

Os números são alarmantes:

  • 38% das mulheres no mundo já sofreram violência online;
  • 85% já viram outras mulheres a serem atacadas digitalmente;
  • 90–95% dos deepfakes[2] pornográficos são feitos sem consentimento — e 90% têm as mulheres como alvo.

Quais as formas mais comuns da violência digital? Assédio nas redes sociais; campanhas de difamação contra ativistas, jornalistas e políticas; exposição de dados pessoais ou a criação de conteúdos falsos para destruir as suas reputações; discurso de ódio e misoginia.

A região da África Ocidental, designadamente o Sahel, acrescenta um patamar ainda mais elevado de ameaça e violência. Nos últimos anos, assistimos a uma escalada alarmante de golpes de Estado, instabilidade política e ataques de grupos extremistas violentos. Países como o Mali, o Burkina Faso e o Níger têm sido particularmente afetados, enquanto os Estados costeiros, como o Benim e a Guiné-Bissau, enfrentam crescentes ameaças à sua segurança. A persistente fragilidade institucional, combinada com altos níveis de pobreza e desigualdade, cria um terreno fértil para a radicalização e o extremismo[3]. As primeiras vítimas são as mulheres.

Vejamos alguns dados:

  • Mais de 1 milhão de raparigas estão fora da escola devido ao terrorismo;
  • Os raptos de mulheres no Burkina Faso aumentaram 218% num ano;
  • 90% das mulheres no Mali sofreram mutilação genital; na Guiné-Bissau como dissemos a média é de 52,1% (ou 95,8% e 86,9% em Gabu e Bafatá respetivamente).
  • 2 em cada 3 mulheres sentem-se inseguras só por saírem de casa para recolher água.

 

Um estudo recente[4] analisou milhares de mensagens, postagens e vídeos de grupos extremistas e identificou seis táticas recorrentes que transformam a linguagem em arma de recrutamento e radicalização. Primeiro, os extremistas normalizam a violência, apresentando atos brutais como aceitáveis e habituais, o que dessensibiliza o público. Segundo, praticam o re‑framing, re‑enquadrando questões políticas ou sociais como batalhas religiosas ou culturais para tornar a narrativa mais apelativa. Terceiro, exploram identidades, reforçando a divisão “nós versus eles” e apelando a laços étnicos, religiosos ou nacionais. Quarto, visam vulnerabilidades, dirigindo‑se a pessoas marginalizadas, traumatizadas ou excluídas, oferecendo-lhes sentido de pertença ou proteção. Quinta, utilizam linguagem emotiva – medo e esperança – para gerar ansiedade ou otimismo que impulsiona a ação. Por fim, recorrem à desinformação, espalhando notícias falsas e teorias da conspiração para confundir, dividir e minar a confiança nas instituições. O estudo conclui que as táticas raramente aparecem isoladamente; são combinadas para maximizar o impacto persuasivo, sobretudo nas plataformas digitais que amplificam rapidamente esses discursos. Reconhecer essas estratégias é essencial para a literacia mediática, políticas de segurança e regulação tecnológica que pretendam conter a radicalização online.

[1] O deepfake é uma das formas mais eficazes de enganar, ao colocar, em vídeo, pessoas a exprimirem palavras que nunca disseram, ou mesmo substituir caras, criando, assim, situações falsas. https://ensina.rtp.pt/artigo/o-que-e-o-deepfake/

[1] Vide o Policy Paper  intitulado “Opções de Resposta Política para a Crise de Segurança e Democracia na África Ocidental” . Elaborado pelo Dr. Alex Vines e Dra. Romane Dideberg, sob a égide da Chatham House para o Observatório da Paz.

[1] Fonte: The Conversation, “Violent extremists wield words as weapons – new study reveals 6 tactics they use”, 2024. https://theconversation.com/violent-extremists-wield-words-as-weapons-new-study-reveals-6-tactics-they-use-266053

Perante este contexto, é preciso agir. Na Guiné-Bissau, o Observatório da Pazformou 1.400 mulheres, jovens e adultas sobre o tema da Prevenção do Radicalismo e Extremismo Violento (PREV). Foram tratados temas como o discurso de ódio online, os mecanismos de recrutamento e como identificar sinais precoces de radicalização.

Numa iniciativa que criará a base para a efetiva prevenção deste fenómeno, o Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Guiné-Bissau, em parceria com o Observatório da Paz está a ultimar a Estratégia Nacional de Prevenção do Radicalismo e Extremismo Violento (PREV-GB). A estratégia integra a perspetiva de género como transversal, propondo medidas concretas para a valorização do papel das mulheres, reconhecendo que estas, como mães e como irmãs, são simultaneamente vítimas e agentes transformadoras, capazes de refrear impulsos extremistas e fazer pender a balança da violência a favor da paz.

Este efeito procura fortalecer a autonomia das mulheres e raparigas, assegurando o seu acesso equitativo aos recursos, às oportunidades e à participação nos processos de decisão, promovendo o seu papel como agentes de resiliência comunitária. Trata-se de apoiar iniciativas de cooperativismo e de empreendedorismo feminino, promovendo lideranças exemplares envolvidas na gestação de nichos de desenvolvimento sustentável.

Fortalecer as mulheres e as associações femininas não é apenas um ato de justiça — é uma estratégia de segurança eficaz, sustentável e centrada nos direitos humanos. Como afirma a Resolução 2242 do Conselho de Segurança da ONU (2015), “a participação plena das mulheres é essencial para abordar as causas profundas do extremismo violento”.

Quando as mulheres participam plenamente na vida comunitária e nos processos de decisão, os conflitos diminuem, a confiança aumenta e as portas do extremismo violento começam a fechar-se, porque nenhuma força é mais transformadora do que a capacidade feminina de gerar diálogo, restaurar vínculos e reconstruir esperança onde a violência tenta criar vazio.

No single Mundo Novo, que junta o jovem rapper português — Estraca, com a cantora, compositora e ativista focada nos direitos civis e das mulheres — Karyna Gomes ouvimos:

Esperança renovada (Speransa arnobadu) | Num mundo sentido (Na mundu ntidu) | Pecados não vão mais (Pekaduris na da mon) | Cada um que se despir do que é ruim (Kada kin dibi pui si kinhon) | Oh, oh-oh-oh | Luta pra poder viver num mundo novo (Luta ka pudi maina na mundu nobu).

É exatamente o que todas e todos podemos fazer: lutar “pra poder viver num mundo novo” onde a violência contra as mulheres seja uma má memória do passado.

[1] https://unric.org/pt/16-dias-de-ativismo-uma-campanha-da-onu-mulheres-contra-a-violencia-digital/

[2] O deepfake é uma das formas mais eficazes de enganar, ao colocar, em vídeo, pessoas a exprimirem palavras que nunca disseram, ou mesmo substituir caras, criando, assim, situações falsas. https://ensina.rtp.pt/artigo/o-que-e-o-deepfake/

[3] Vide o Policy Paper  intitulado “Opções de Resposta Política para a Crise de Segurança e Democracia na África Ocidental” . Elaborado pelo Dr. Alex Vines e Dra. Romane Dideberg, sob a égide da Chatham House para o Observatório da Paz.

[4] Fonte: The Conversation, “Violent extremists wield words as weapons – new study reveals 6 tactics they use”, 2024. https://theconversation.com/violent-extremists-wield-words-as-weapons-new-study-reveals-6-tactics-they-use-266053

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