“Cada dia, um pai e o filho saltam com um paraquedas da sua casa, presa a um penhasco, para descer até à aldeia distante onde vendem o gelo que produzem diariamente.” – Eis a descrição que acompanha o “teaser” da curta-metragem de animação – “Ice Merchants” -, criada por João Gonzalez, que a escreveu e realizou. Primeiro filme português nomeado para o Óscar e premiado no Festival Internacional de Cinema de Cannes.
Na Guiné-Bissau, os cidadãos também saltam diariamente de “paraquedas”, na medida em o Estado luta por assegurar os serviços básicos. Num país que ocupa a posição 174 no Índice de Desenvolvimento Humano (HDI; 2023)[1], marcado pela instabilidade política e a fragilidade institucional, são as organizações da sociedade civil que asseguram o acesso a serviços essenciais amortecendo os desafios e os constrangimentos do dia a dia das comunidades.
Hoje assinala-se o Dia Mundial das Cidades – 31 de outubro de 2025, sob o lema “Cidades Inteligentes Centradas nas Pessoas”. Este dia foi instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2013, através da resolução 68/239, com vista a assinalar o encerramento do “Outubro Urbano” — uma iniciativa lançada pela UN-Habitat em 2014 para destacar os desafios urbanos globais e mobilizar a comunidade internacional em torno da “Nova Agenda Urbana”. A data tem como objetivo sensibilizar para as tendências e os desafios da urbanização, promover a cooperação internacional e contribuir para a construção de cidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis, em linha com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11.
Na Guiné-Bissau, onde 79% da população tem menos de 35 anos e 53% são mulheres, mas onde persistem fragilidades institucionais, instabilidade política e desigualdades regionais, o caminho para as cidades sustentáveis não passa por soluções excessivamente tecnológicas, mas sim pelo fortalecimento da cidadania ativa. Assim, as organizações da sociedade civil (OSC) emergem como coconstrutores de políticas públicas e porta-vozes do diálogo entre as comunidades e as autoridades locais para a boa governação.
É neste contexto que se insere o projeto Boa Governação, o qual contribui ativamente para o reforço das capacidades das OSC nos setores do Desenvolvimento Humano, da Economia Verde e Inclusiva e da Boa Governação em cinco cidades da Guiné-Bissau – Gabú, Bafatá, Canchungo, Buba e Bolama.
Precisamente, hoje, em Bolama, cidade com 4 192 habitantes, foi assinado o Memorando de Colaboração com o Grupo de Ação Local (GAL) para a implementação do Fundo de Desenvolvimento Local através do Plano Participativo Local (PPL).
O PPL parte do reconhecimento de que, mais do que vontade política, é essencial capacitar os cidadãos para exercerem plenamente o seu direito a participar e a fiscalizar as ações governativas. Através de uma abordagem colaborativa, promovem-se princípios fundamentais de boa governação — como a participação, a transparência, a responsabilização, a prestação de contas, a partilha de conhecimento e o trabalho em rede — num exercício coletivo que visa, acima de tudo, empoderar as comunidades locais.
A UN Habitat na Guiné-Bissau identificou, juntamente com as comunidades, as prioridades de Bolama, capital da ilha histórica e região de Bolama, famosa pela sua arquitetura colonial portuguesa e pelas praias. Bolama integra o arquipélago de Bijagós – considerado pela UNESCO como Património Natural Mundial.
A prioridade identificada foi a gestão de resíduos sólidos. Seguidamente foi elaborado pela UN Habitat o Plano de Ação de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos da Cidade de Bolama.
De acordo com Ramiro Bubacar Embaló, Governador da região de Bolama-Bijagós, Bolama “é confrontada com o grande desafio de combate aos resíduos”.
Segundo o Governador, “estas preocupações devem ser de toda a gente porque não há vazadouro. Cada cidadão deve assumir o papel de um bom filho da terra para o desenvolvimento da região de Bolama-Bijagós”.
O projeto Boa Governação em estreita articulação com a UN Habitat respondeu a este desafio, orientando o Plano Participativo Local para a resposta a esta prioridade. A resposta passará pela criação de um sistema de evacuação de lixo, pela promoção da instalação de contentores de lixo, pela aquisição e operacionalização de meios de transporte e, finalmente, pela recolha e evacuação do lixo.
Todavia, todo o processo, não fica centralizado numa ONG, mas é gerido, numa aproximação aos orçamentos participativos[2], pela comunidade local. É precisamente o GAL que lança os termos de referência para a aquisição dos meios ou para a subcontratação de um prestador de serviços (empreiteiro para obra, no caso de outras cidades onde o projeto atua). Depois o mesmo GAL reúne para avaliar as propostas e/ou orçamentos recebidos. Decide e comunica ao vencedor. Adjudica e assume o pagamento (nas diferentes fases) a partir de uma conta local sob sua gestão.
Após a assinatura do Memorando foi realizada uma ação de recolha de lixo com 34 voluntários, devidamente apetrechados com pás, ancinhos e sacos do lixo.
Longe de pretendermos fazer spoiler a quem ainda não viu a curta-metragem Ice Merchants, podemos afirmar que a aterragem pode ser suavizada pela comunidade dos cidadãos (Aristóteles)[3] na assunção do seu papel na Boa Governação.
Cidades inteligentes, não são as cidades cheias de câmaras de videovigilância, de radares de velocidade, ou com mais polos de lançamento de start-ups. Cidades inteligentes são aquelas centradas nas pessoas, quando os seus munícipes, especialmente os mais vulneráveis, estão no centro das decisões e têm uma voz ativa na definição e monitorização de políticas públicas locais.
Na Guiné-Bissau, o progresso urbano, está a ser construído com poucos recursos, mas com grande coragem cívica — e com a convicção de que nenhuma cidade é sustentável se não for, antes de tudo, permeada pelo diálogo entre os cidadãos, as OSC e as autoridades locais.
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O projeto de Fortalecimento das OSC para a Boa Governação e Desenvolvimento na Guiné-Bissau, é financiado pela União Europeia e pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., e implementado pelo Instituto Marquês de Valle Flôr (IMVF) e pela Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH).
[1] https://hdr.undp.org/data-center/specific-country-data#/countries/GNB
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Or%C3%A7amento_participativo
[3] Aristóteles, Livro III da Política: “uma cidade é uma comunidade, e essa comunidade é de cidadãos”.