14 de dezembro. O termómetro marcava 28º Celcius. À sombra da mangueira a temperatura era confortável, embora se tenha elevado claramente aquando da discussão de alguns pontos da agenda da 17.ª Assembleia Geral da Área Marinha Protegida Comunitária de Urok no arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau. [1]
12h00. Hora prevista para o início dos trabalhos. Segundo o Eng.º Emanuel Ramos, coordenador operacional do projeto Etikapun N’ha – Urok, Laboratório de Resiliência da Cultura Bijagó, os horários numa área marinha protegida não são tão rígidos como noutros lugares, além de vários outros fatores, o transporte marítimo entre ilhas e mesmo o transporte terreste constitui-se como um desafio. Muitos chegam a percorrer 18 km a pé. Aqueles que vêm das ilhas de Ponta (Nago, na nomenclatura bijagó) e Maio (Chediã), ilhas adjacentes, têm de se sujeitar aos horários das marés, optando inclusive por viajar no dia anterior.
13h30. Arrancam, finalmente, os trabalhos da Assembleia. Nessa altura contam-se 87 homens e 43 mulheres num total de 130 participantes. Entre estes estavam como observadores João Monteiro, coordenador de projetos do IMVF; Denilson Mendes Correia, Diretor de Floresta e Fauna do Ministério de Agricultura e Desenvolvimento Rural; Pierre Campredon conselheiro científico do IBAP – Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas; Alison Cabral, jornalista da Rádio Jovem e o Comandante da Brigada Nacional de Proteção da Natureza e Ambiente da Guarda Nacional, o agente Feliciano Fandanhaga.
Do lado da Tiniguena – Esta Terra é Nossa!, ONG Guineense com assento na Assembleia Geral participaram Miguel de Barros, Diretor Executivo; Augusta Henriques, Conselheira da Direção; Ocante Sá, responsável de contabilidade e finanças, Sábado Vaz, Sanhá João Correia, Ericson e Nelson C.
Os trabalhos iniciaram-se com a apresentação dos observadores convidados e com a aprovação dos pontos da agenda abaixo:
- Balanço das atividades
- Apresentação de contas
- Pontos discutidos nas assembleias insulares para apresentação à assembleia geral
- Apresentação do Prémio Equador
- Exploração de recursos costeiros
- Fiscalização
O balanço das atividades incluiu a referência a alguns dos projetos em curso que a Tiniguena implementa na região com os seus parceiros e financiadores. No caso do projeto Etikapun n’ha – Urok, onde o IMVF é o parceiro principal, financiado pela União Europeia e pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., o enfoque foi dado à finalização da construção de 3 escolas e à previsão do arranque das obras de outras tantas. A escola de Abu, a única escola com 5.º e 6.º no conjunto das 3 ilhas, situada na ilha Formosa, está a transitar para uma escola tipo acampamento feita de ráquis dos ramos das palmeiras e com as folhas desta árvore como telhado mantendo as originais seis salas de aula mesmo em frente às instalações originais. Assim que esta escola temporária estiver concluída, o que deverá ocorrer nas próximas 2 semanas, as obras no edifício antigo da escola de Abu arrancarão. Implicam a substituição completa do telhado. A recuperação e construção de novos equipamentos sanitários, o fornecimento de água potável e uma cantina, mobiliário escolar e novos quadros. Além das escolas, a construção e reabilitação de fontes de água para consumo e atividades agroalimentares foi outro ponto apresentado. O programa do fundo de arranque para microiniciativas económicas que beneficiam as mulheres e jovens implementado pelo projeto através da Área Marinha Protegida Comunitária (AMPC) de Urok foi também apresentado quanto aos resultados e objetivos. E, por fim, foram enumeradas as principais atividades agrícolas, nomeadamente as hortas e a produção de arroz de bas fond, que se pretende priorizar em detrimento do arroz de pam pam, mais comumente praticado localmente.
Na apresentação de contas da AMPC, feita por Ocante Sá, foi dado enfoque à razão pela qual esta assembleia arrancou com 1h30 de atraso: a entrada em funcionamento da nova vedeta de transporte de passageiros e mercadorias a fazer a ligação das 3 ilhas com Bissau, a capital da Guiné-Bissau. Com efeito às 12h30 decorreu a cerimónia de inauguração da nova embarcação, batizada de “Kantucha”, em homenagem à mulher bijagó de formosa que tanto lutou pelos direitos das mulheres locais e por transporte condigno entre as ilhas e a capital. Trata-se da primeira embarcação de alumínio exclusivamente dedicada ao transporte de passageiros e mercadorias no país.
A cerimónia no leito do rio teve de ser feita aquando da alta da maré. Miguel de Barros, Diretor Executivo da Tiniguena explicou como a nova embarcação foi disponibilizada. Com o apoio da Cooperação Japonesa a embarcação seria fabricada em França. O cofinanciamento veio do Prémio Equador do PNUD (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas) de 2019 no valor de 10 mil dólares que reconheceu. Desde 2002 que a Iniciativa Equador das Nações Unidades suporta 208 comunidades locais e povos indígenas em 70 países que conseguirem implementar soluções de desenvolvimento sustentável local de natureza avançada.
A Kantucha vem substituir a embarcação de madeira que funcionou de 2005 a 2018, durante 12 anos, uma excelente longevidade para os padrões locais. Tendo custado cerca de 97 mil euros, a nova embarcação prevê realizar uma viagem por semana de ida e volta a Bissau. Recolhe passageiros e mercadoria das 3 ilhas. A questão da gestão sustentável da canoa foi um dos temas mais quentes da Assembleia, e foi seguramente o que levou mais tempo a ser endereçado. No final foi estabelecido pela Assembleia o valor de 3.000 francos CFA por passageiro de Formosa e Nago; e 2.500 francos CFA para os habitantes de Maio (Chediã) cuja passagem é obrigatória na rota de e para Bissau.
Para se chegar ao valor da tarifa por passageiro, Ocante Sá, que estudou contabilidade na Bélgica, país onde viveu durante 5 anos, explicou os custos inerentes ao processo de gestão desta embarcação. Taxas, custos dos marinheiros, combustível, consumo e amortização dos 2 motores de 40 cavalos, entre outros. A estimativa será conseguir faturar 70.000 francos CFA por deslocação. Para esse efeito importa definir rotas regulares e se necessário for as pessoas terão de ser organizar inclusive viajando no dia anterior até ao porto onde a Kantuncha seja capaz de aportar. A população de Chediã paga um valor inferior não só pelo facto de ser um ponto de passagem obrigatório nas rotas de e para Bissau, mas também pelo facto de serem obrigados a entrar dentro de água, por vezes com água até ao pescoço, para conseguir embarcar. Para chegar aos 70 mil francos seriam necessários pelo menos 23 passageiros. A embarcação tem capacidade para levar entre 35 a 40 passageiros sentados mais carga. A pior estimativa prevê uma faturação anual na ordem dos 4.494.000 francos CFA/ano (6.850 €), ou seja, 374 mil francos CFA por mês (570 €).
Depois de aprovada a tarifa por passageiro e ultrapassada a discussão em torno da nova embarcação, Sanhã João Correia, agrónomo do projeto Etikapun Nh’a, apresentou os resultados do programa de créditos da AMPC, chamando a atenção quer para as oportunidades, quer para os desafios.
Relativamente ao ponto 3 da agenda, as assembleias insulares que precedem os trabalhos da Assembleia Geral trouxeram uma preocupação para a qual era urgente tomar uma decisão, a questão da sobre-exploração de ostras (combé).
Este foi o segundo ponto mais quente da Assembleia. Foi necessário definir qual o período durante o qual seria permitida a apanha de combé para comércio e qual o período onde só é permitida a apanha para consumo familiar local. É uma tarefa económica realizada exclusivamente pelas mulheres. Daí a assembleia se ter dividido sobre se só estas é que se poderiam pronunciar sobre um assunto que lhes dizia diretamente respeito. O impasse permanecia até que Nela Brandão, uma líder carismática e membro do Comité de Gestão de Urok, de forma clara expôs o seu argumento: os homens também deviam poder votar neste assunto porque na Assembleia Geral de Urok todos têm uma palavra a dizer e todos os votos contam.
Por maioria foi tomada a decisão de permitir a apanha comercial de 15 de dezembro a 28/29 de fevereiro. Durante o resto do ano a apanha para fins comerciais será proibida e as infrações detetadas pela equipa de fiscalização serão alvo de coimas e/ou apreensões.
Chegados ao ponto 6 da agenda, a equipa de fiscalização referiu ter realizado 44 missões em 2019, sendo que a média anual ronda as 48 missões. Notam que é na zona 1 onde se registam mais infrações. Este foi um ponto também discutido nas assembleias insulares. A pesca comercial na zona 1 está interditada, somente é permitida a pesca para consumo familiar local. Os operadores turísticos presentes no arquipélago deslocam os pescadores desportivos para essas áreas porque são aquelas que dispõem de mais recursos marinhos. Nem sempre a equipa de fiscalização consegue intercetar os infratores e quando faz estes exercem uma enorme pressão para tentar escapar às sanções. Até já há vestígios de exploração do próprio tarrafe, elemento natural fulcral na sustentabilidade de todo o arquipélago e da biodiversidade.
17h30. Terminam os trabalhos da Assembleia. Entretanto o número de participantes chegou aos 151. Agora era preciso retemperar as forças com uma refeição para todos. As 4 horas de discussão foram intensas, mas sempre pautadas por um espírito construtivo que procura manter os interesses das comunidades e o respeito pelo meio ambiente. Os bijagós são os primeiros a reconhecer que é necessário ceder nalguns ganhos imediatos se quisermos preservar os nossos recursos terrestres e marinhos para podermos continuar a viver na nossa terra: no na guarda no recursos para no pudi come aôs ku amanha (nós vamos conservar os nossos recursos para podermos usá-los hoje e no futuro). Se na COP25 CHILE, a Conferência Climática das Nações Unidas que decorreu em Madrid de 2 a 13 de dezembro tivessem participado os membros da Assembleia Geral da AMPC de Urok, certamente as recomendações finais seriam bem mais promissoras.
Enquanto o mundo tarda em tomar decisões difíceis, o projeto Etikapun Nh’a continuará a promover o desenvolvimento sustentável na AMPC das Ilhas Urok, promovendo a melhoria das condições socioeconómicas e contribuindo para a cogestão e a governação participativa dos recursos naturais e culturais.
Artigo escrito por João Monteiro, coordenador do projeto Etikapun n’ha, em missão na Guiné-Bissau.
[1] O Arquipélago dos Bijagós faz parte da Guiné-Bissau e é constituído por 88 ilhas situadas ao largo da costa africana, compondo uma área protegida, classificadas pela UNESCO em 1996 como reserva da biosfera. Esta reserva conta com uma diversificada fauna na qual se contam, entre outras espécies macacos, hipopótamos, crocodilos, aves pernaltas, tartarugas marinhas e lontras.